Wednesday 1 June 2011

O processo de criação na consciência crítica


A reflexão do curso substancializa-se no entendimento do processo de criação e na análise deste como um princípio existencial na consciência crítica. Para compreendermos este processo é necessário a análise de conceitos fundamentais que em relação o substancializam e o tornam possível na sua impossibilidade. Para iniciarmos esta análise é importante indagar no conceito de sistema e na sua relação com o da cultura, porque nos possibilitarão entender a própria estrutura social que predomina e caracteriza na sua pluralidade a Humanidade. Com o exemplo de excelência da cultura grega no século V a.C. iremos compreender como a cultura envolve em si um meio popular, cínico e também crítico.
Após esta caracterização conceptual do sistema é necessário introduzir o conceito de consciência e o modo como esta se envolve na cultura. Entendendo a importância substancial da consciência crítica e do seu modus operandi que lhe permite uma distinção complexa das outras consciências, iniciamos o estudo das especificidades de ser consciência crítica. A consciência crítica e a sua atitude perante o mundo traduzem em si um estado autêntico e totalmente lúcido de ser em si e para si. Esta consciência nutre em si um desejo intensificado pelo impossível, consistindo esse numa busca contínua que envolve o seu trabalho de exigência com o objectivo de superar todas as condicionantes do possível e do próprio ego na sua existência. Porque o ego é uma deturpação do real e emerge em si comportamentos cínicos que não permitem o alcance de um pensamento ético necessário para a rede de intencionalidades existente na própria humanidade.
Para terminar esta primeira síntese conceptual das temáticas abordadas no curso iremos relacionar o estado autêntico da consciência crítica com o facto de ela reconhecer perfeitamente a sua finitude e a finitude do Todo. Não temendo a morte elabora em si uma exigência crítica, que permitirá uma transformação significativa nela mesma. Esta transformação é o processo de criação, derivado de uma resimplificação da consciência crítica. Sendo ela totalmente consciente de que não é a criação em si mesma que interessa valorativamente, mas sim o processo e o trabalho em si que este envolve.


1.SISTEMA & SISTEMAS
A Cultura popular, cínica e crítica. Exemplo da cultura grega no século V a.C.

 Primeiro há que compreender que sistema traduz em si uma configuração que possui uma estrutura interna que regula e comporta os seus valores e que por sua vez existem diversos tipos de sistema. Chegando aqui entendemos que é na sua diferença que encontramos as idiossincrasias de cada civilização e sua cultura. Contudo como podemos reflectir criticamente nas suas diferenças?
Podemos referir de modo adjectivado que existem sistemas fechados ou abertos e também simples ou complexos. E indagando na sua base estrutural binária é possível descobrir a possibilidade e impossibilidade das suas circunstâncias culturais. Num sistema simples podemos compreender que as consciências nutrem em si uma reprodução do mesmo, enquanto num sistema complexo as consciências exigem mais de si e procuram uma reprodução do diferente. Um bom exemplo a trabalhar aqui é o da cultura grega no século V a.C., que por sua vez teve como base um sistema aberto e complexo.
O sistema da cultura grega é delineado pela cultura popular (maioria da população) e pela cultura cínica e crítica (minoria importante da população: cidadãos). Estas três culturas são importantes na sustentabilidade da Cultura em si mesma, mas como podemos compreender as suas divergências? Como já referimos no parágrafo anterior, as divergências encontram-se no modo de reprodução das consciências, ou seja, no modo como estas assumem a sua própria existência perante o Todo. Na cultura grega perante a crise (krisis/ decisão) surge uma transformação na cultura cínica que permitiu o desenvolvimento da cultura crítica. Muitas consciências cínicas exigiram em si uma transmutação intelectual que permitiu o alcance de um estado de reflexão crítica sobre o meio físico que as rodeava. Que levou consequentemente à superação do simples estado de reflexão em si mesma e em prol do próprio beneficio.
Tomando consciência de que vive num sistema que possui uma rede de intencionalidade a própria consciência crítica é obrigada a reconhecer a alteridade existente no mundo. O Outro e a consciência deste envolve uma reflexão necessária para a compreensão do indivíduo, porque o outro está presente nas suas relações existenciais e estas caracterizam-no e substancializam-no. Podemos, também, reflectir que as consciências estão todas interligadas, mas que existe uma relação intrínseca entre a consciência cínica e a consciência crítica.
Atenção não há aqui um estado superior de consciência (não há uma escala), mas sim um estado mais complexo que se traduz no próprio esforço e exigência que a consciência induz no seu exercício de pensar (ginástica), trabalho e na sua própria existência. Uma atitude ou uma escolha de vida que se concretiza num caminho delineado pela própria consciência em si e para si no mundo que conhece e sabe que desconhece.

2.O DESEJO PELO IMPOSSÍVEL
O desvio, o “estar perdido” e o modus operandi da Consciência Crítica.

Como começamos a perceber a consciência crítica exige bastante de si mesma. A sua diferenciação da consciente cínica consiste no facto de ela procurar no seu trabalho um bem que vá para além do benefício próprio. Procurando compreender a existência de forma reflexiva e crítica, sabe da sua pequenez perante o todo e reconhecendo a sua finitude procura viver de forma autêntica. Não procura o reconhecimento de si mesma, mas sim uma reflexão exigente e holística do mundo que nutra em si uma procura intensiva do impossível e do seu sentido. Como nos começamos a aperceber a consciência crítica possui um desejo (eros) imenso pelo Impossível. Este desejo não é voluntário e deve-se ao facto da consciência crítica ter uma tendência significativa para o desvio. E porquê? Porque a consciência crítica procura “estar perdida” nas problemáticas da existência. Não procura verdades, nem conceptualiza com certeza as possibilidades. Esta consciência quer envolver-se na impossibilidade da existência, quer transformar-se com ela e compreender o nada que se emerge na própria existência.
Tudo começa com a transformação de si mesma. A consciência crítica entende a necessidade de exigir de si e de superar em si condicionantes que aprendeu na sua formação pedagógica e existencial como um objectivo vital. Ir para além do axioma, do óbvio e do evidente é um estímulo para que o processo de transformação se inicie e comece a ocorrer na consciência e na sua própria existência. Sendo este o processo que lhe permite chegar ao processo de criação.
A consciência crítica quer trabalhar nesse processo e desenvolver o seu estar crítico no mundo. A crítica é um princípio existencial que a caracteriza em tudo e é um esforço cognitivo bastante exigente que lhe permitirá um envolvimento criativo no mundo do conhecimento (no seu carácter multidisciplinar).
É necessário compreender que presenciamos um sacrifício, porque esta exigência é o seu modus operandi e a consciência sabe que essa tendencialmente aumentará e não estagnará. Contudo é um sacrifício que se traduz numa vontade crítica que permite um desafio existencial muito complexo e é somente a consciência crítica que o aceita até ao seu fim. Uma atitude autêntica perante a própria complexidade da vida.

3.A MORTE
A finitude do ser humano e do Todo.

A consciência crítica não teme o seu fim e tem a perfeita noção que na vida humana tudo é temporário e nada é fixo. Não acredita em ilusões e utopias que ditem uma “realidade” para além da morte. Ironizando por completo ideias fantásticas de uma imortalidade e eternidade. E o mais importante é que não substancializa, nem sustenta o seu trabalho com ideias de um reconhecimento post mortem, porque sabe que o próprio mundo como conhecemos não é fixo, nem o próprio Universo.
A morte conceptualmente faz parte do ser como a própria vida. O morrer é como estar não nascido e por isso a consciência crítica não faz declarações cínicas nem se ilude de tal forma sobre o seu fim. Simplesmente vive e complexamente tenta aproveitar o máximo que a vida tem para lhe oferecer. Ela procura essa oferta desconstruindo e construindo, buscando o sentido da própria existência e das significações que sustenta em si e para si.
É importante reflectirmos nesta problemática, visto que ainda hoje a não-aceitação da morte e a sua não compreensão é um facto existencial. É necessário compreender que reflectir na finitude e que a consciencialização dessa pode traduzir-se numa transformação significativa na procura de sentido da própria existência. Até porque se raciocinarmos um pouco não tem muito sentido ser, sem compreender o que implica ser. Como em tudo, há um início e um fim e a consciência desses dois patamares é que torna a coisa, coisa em si.

4.A CRIAÇÃO E O TRABALHO EM SI
O valor da criação não se encontra na criação.

Para terminar esta primeira síntese conceptual da matéria sumariada nas aulas do curso, determinamos como essencial a compreensão de encontrar o lugar do valor na criação da consciência crítica. Até agora, estivemos aqui a falar das condições a que se propõe a consciência crítica para o alcance do processo de criação em si. Como já sabemos, este processo deve-se a um processo complexo de transformação da consciência, que lhe permite um mergulho exigente e vital no mundo da impossibilidade.

Como, também, já se referiu a consciência crítica conhece a complexidade do outro em si. Sendo totalmente consciente deste facto e da existência de uma rede de intencionalidades que também a caracteriza, resulta a posteriori um momento em si de resimplificação. E é neste momento que no seu trabalho começa a surgir um carácter criador. E porquê? Porque é neste momento primordial que a consciência alcança uma libertação do seu ego muito significativa para o seu trabalho em si.
Para compreendermos melhor esta questão e a necessidade desta resimplificação na consciência crítica vamos levantar, portanto, a questão do Valor: Onde está o valor na criação ou no trabalho em si envolvido em todo o processo?
Para uma consciência cínica de certo que o valor está na sua criação. Porquê? Porque esta consciência dita o seu próprio reconhecimento (ou seja, auto reconhece-se como) e na verdade esta acredita que a sua criação dita também o seu valor como criador. Pensa condicionadamente em etapas e não em termos de exigência. Facilmente uma consciência como esta já se encontra estagnada há algum tempo (e não tem consciência de tal facto), porque acredita que está no patamar que deve estar e que a prova disso é a sua criação. Esta ideia é cínica e pobre de espírito crítico. Acreditando na obra, não se desenvolve e assume em si uma auto importância que só traduz o ego de si mesma.
No processo de criação é necessária a libertação do ego, porque este contamina a consciência e o trabalho dessa. O valor não está na criação, mas sim no trabalho, no esforço e na exigência que a consciência deve impor a si para superar todas as condicionantes existentes. O ego é a maior condição da consciência. E sendo consciente disto, a consciência crítica valoriza sim o trabalho e sente-se insatisfeita perante qualquer criação sua.
Para a consciência crítica a criação é somente um pequeno momento desse grande desafio (o trabalho em si) que envolve a própria complexidade do processo. A consciência crítica não desiste e sabe que o erro resulta na aprendizagem dessa mesma complexidade. Não se reconhece a si mesma, mas é capaz de reconhecer o outro. A sua exigência é fulcral em todo o processo de transformação e por isso também na sua própria existência. E por fim ela acredita que é neste esforço que está a possibilidade da impossibilidade de alcançar em si e para si um devir existencial autêntico perante o Todo complexo que a rodeia. Um respeito “crítico filosófico” perante a consciência de se estar vivo!
*

Após esta pequena síntese conceptual é importante reflectir que ser consciência crítica é realmente um desafio e nem todos o podem conseguir concretizar. Há imensas condicionantes em jogo e o melhor exemplo estará na configuração do sistema da própria cultura onde o indivíduo está inserido. Contudo, é sempre uma boa exigência para impor à nossa consciência, porque iremos procurar no nosso devir até onde conseguimos ir. É um desafio, um teste, um exame e como sabemos é necessário criar exercícios em nós mesmos para praticar a ginástica complexa do pensamento. Porque se realmente podemos pensar, racionalizar, argumentar ou criticar é bom que desenvolvamos ao máximo o que podemos e o que achamos não poder. Ir para além na vida é essencial e não o ir para além da vida. É no aqui e no agora que nos temos de propor escolher o que queremos para a nossa vida. A vida é curta e é de facto a nossa primeira e a ultima actuação neste mundo, portanto cabe a cada consciência escolher o que deseja para si. Penso, que não há aqui um caminho certo ou errado, mas sim caminhos simples ou complexos.
É importante saber que a consciência crítica é tolerante com o outro e não discrimina a simplicidade de consciências existentes, quer que o seu trabalho seja para todos. Contudo, tem a noção crítica de que o melhor modo do seu trabalho ser avaliado é que outras consciências críticas o avaliem. Não gosta, também, de aplausos e reconhecimentos cínicos e é por isso que o seu pensamento tem uma dimensão ética complexa e que está presente na sua reflexão crítica perante a exigência como modus operandi e como modo de estar e ser perante a vida.  
Termino o meu pequeno trabalho afirmando a importância desta temática e o seu interesse, pelo facto de nos permitir reflectir num ideal existencial que envolve em si princípios críticos e éticos que actuam no modo de se ser e no modo de se agir. Como é evidente, neste pequeno texto não está presente toda a conceptualidade que a teoria da consciência crítica suporta em si mesma, mas sim uma parte que penso ser essencial para a compreensão de que existe um processo de transformação na consciência para ela se tornar crítica. E que esse é muito complexo e exigente, contudo permite uma superação das condicionantes do possível e uma abertura às não limitações da impossibilidade na própria existência.

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